Ruborizou ao ser flagrado pensando nela. Poderia ter sido pior do que foi, porque acabara de guardar no fundo do bolso um papel rabiscado de poesia menor. Fazia tempo que o destino não lhe pregava uma peça, mas parece que veio tudo de uma só vez, cobrando juros.
Desde o dia em que a fitou por detrás de sua câmera pela primeira vez, percebeu que estava entrando num perigoso e excitante labirinto do amor: aquele que nasce entre amigos.
Não sabia até que ponto tudo o que sentia, a partir daquele momento, era correspondido da mesma forma. Mas era correspondido. Filmes, livros, mensagens poéticas, conversas demoradas e tudo mais o que se pode ter com uma pretendente a uma namorada, assim como uma grande amiga. "A diferença está no tocar dos lábio" era o que pensava.
Era um pensamento real e recorrente, este de que namoradas eram amigas com maior intimidade. E era justamente por isso que aquela mulher tornava-se tão especial. Era, além disso, uma mulher feita, quadril definido, costas largas, cabelos enrolados e olhos lanceados, negros e misteriosos como a mais profunda madrugada. Carregava uma energia de guerreira mas sua voz e sua expressão eram de uma inocência apaixonantes. Foi justamente no meio deste paradoxo que, perdido, foi atingido no peito pelo projétil do amor.
Já não era tão seguro como antes e sentia-se desinteressante ao lado dela. Só restou-lhe a mais velha e eficaz arma que conhecia para, ao menos, prorrogar o fim do seu delírio: abriu mão da poesia.
Foi como chuva no sertão. Bastaram os primeiros pingos de Rilke e Garcia Márquez para que suas chances passassem a florescer. A correspondência foi tão imediata e verdadeira que reconheceu de primeira o coração solitário que tentava conquistar. Era com o dele: de paixões verdadeiras, antigas e bem acabadas, mas ainda presentes, metamorfoseadas pelo uso da razão e culto ao passado. Não era tão surrado quanto o dele, mas se reconhecia de longe os gritos de um coração de "amores-para-sempre". Teve vontade de declarar-se copiosamente e sem amarras, mas a prudência o fez recuar e mudar de tática. Mas não fez nada diferente do que fez a vida inteira: conformou-se com o que recebia e esperou um recado dos céus ou dela própria, como sinal verde para um próximo passo. Era uma amiga única no mundo, talvez a sua última chance concedida pela providência antes de se entregar de uma vez à solidão dos românticos derrotados pelo mundo real.
À esta altura, não eram poucas as pessoas que haviam percebido a mudança radical de atitude dos dois. Uns com mais, outros com menos liberdade, perguntavam a ele quando iriam revelar o namoro secreto. O que lhe doía não eram os questionamentos freqüentes, mas sim a dura realidade de nunca tê-la beijado, nem em sonho.
Passava noites lendo e escrevendo, pensando se ela estaria pensando nele e se estaria perturbada com os comentários dos amigos. Sabia que nunca saberia a resposta porque estava lidando com um coração que era exatamente como o seu. Nenhum dos dois iria renunciar à segurança e felicidade dos flertes camuflados para aventurar-se em campo aberto onde o pior castigo seria a rejeição do amor carnal – se é que ela sentia o mesmo.
Acordou, num outro dia, crendo que tudo aquilo não passava de fantasia. A carência crônica somada ao jeito amoroso dela, temperados com os comentários públicos, sempre positivos, sobre o suposto romance, lhe mexeram a cabeça. Ainda não havia contado para ninguém sobre ela, tão pouco comentado à respeito de suas intenções. Já não sabia o que queria.
E então foi surpreendido mais uma vez, só que agora por ele mesmo, enquanto lia um cartão de amor à venda numa barraca de ambulantes na rua. Não se condenou, pelo contrário, decidiu que era hora de arriscar um pouco mais. Ao aceitar isso, um frio irreal se aplacou sobre o seu corpo. Estava petrificado, tremendo, mas mesmo assim mandou para ela um trecho do seu diário, aspeou, e não citou autor. Não mentiu, por tanto. A mentira era uma arte de guerra que havia abdicado há muito tempo. Apenas omitiu o fato de ter sido ele mesmo o autor dos versos e, mais do que isso, era ela a figura referida no trecho.
Ela achou lindo e recompensou a audácia dele com o que tinha de melhor em literatura. Intensificou-se a batalha velada de quem conseguiria tirar o outro do chão mais alto citando um poeta ou um romancista.
E eles flutuavam. Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Garcia Márquez, Florbela e tantos outros ajudaram a colocá-los os dois na zona mais perigosa até então. Era chegado o momento da decisão sem que um ou outro soubesse exatamente qual era o futuro. Com bandeiras, cavalaria e todo o exército tinham que demarcar os novos limites dos corações.
O que tenho a perder? questionava. E ele mesmo respondia sem paciência: ela, burro! Era fato que não queria perder um laço tão forte por conta de um amor fora de hora, mas lembrou-se de que era a sua última chance, determinada por ele mesmo, porque já não tinha mais ânimo para regar novas paixões. Esta era diferente porque parecia já existir desde sempre, e estava apenas adormecida por todo o tempo. Não sabia o que fazer e tinha certeza de que a paciência era a sua maior e mais oportuna virtude.
Antes de dar o passo final – porque supunha que teria que sair dele a iniciativa - resolveu reler suas poesias de antigamente para comparar os amores e se acostumar com as dores da batalha da vida. Eram tristes, meio pobres, e de verdade. Uma ou outra valiam a pena, mas a maioria não merecia terem sido escritas daquela forma. Eram quase seis anos de memórias poéticas escritas num caderno escolar azul. Na capa lia-se "poesias" em baixo relevo forçado por uma caneta sem tinta. Na primeira folha, a única coisa no caderno que não havia sido escrita por ele. Era uma carta de Rilke para o jovem poeta, em seu clássico livro que dizia: amar é bom porque amar é difícil. O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais dura que nos foi imposta, a maior e última prova para a qual as outras são apenas uma preparação. O amor mais humano consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões. Seria isso um sinal? Teria ele encontrado um alento para suas dúvidas numa sutileza da divina providência?
Na contra-paga, o nome de uma outra amiga com seu endereço. Outro sinal, pensou. Resolveu escrever imediatamente meia dúzia de palavras para que, na resposta, tivesse mais uma dica dos céus. E a resposta veio em forma de Mário Quintana (porque é muito bom ter amigos poetas), que dizia. "O segrego é não correr atrás das borboletas".
Ficou boquiaberto. Não havia possibilidade nesse mundo, nem em outro, de que fosse coincidência. Só ele pode entender o que nós não somos capazes. O que havia de especial numa resposta tão curta? Seria o Mário Quintana, seria o significado literal da frase ou as borboletas?
O fato é que decidiu dormir, feliz como há muito tempo não se via, e esperar o dia amanhecer. E esperou amanhecer e anoitecer por dias seguidos, suportando a agonia do desconhecido.
Quando finalmente se puseram frente a frente, o conflito não se deu externamente, mas dentro do corpo dele. Cabeça e coração deveriam se alinhar. Sentia um calor insuportável e um frio no ventre. Os dois sintomas juntos o deixaram nauseado. Sentia o corpo borbulhar, como se tivesse centenas de borboletas na barriga, se debatendo em busca de liberdade. Realmente, não precisou correr atrás delas.
Abraçou-a com força para se estabilizar e sentir na pele cada centímetro do corpo dela. Cochichou alguma coisa ao ouvido e ela quase desmontou. A primeira reação foi de afastar-se, temendo que houvesse ido longe demais, mas ela firmou os pés novamente e, finalmente, suas almas se encontraram. Olharam-se profundamente e não puderam esconder o vermelho intenso dos seus rostos. Tentaram um primeiro beijo, carinhoso, mas o tiro não teve mira apurada. Tocaram os lábios na face um do outro. Abraçaram-se novamente e ele a ouviu dizer claramente três vezes: "beijo, beijo, beijo".
Resolveram tentar novamente o beijo derradeiro da batalha enamorada. Foram mais cautelosos, mais lentos e o alvo atingido foi o canto de suas bocas, o suficiente para congelar o momento. Sentiu um arrepio no corpo todo, como se tivesse passado na frente da morte. Mas sentia-se mais vivo do que nunca, com seus sentidos atentos apenas à conexão dos seus mundos. Literalmente pararam no tempo e puderam ouvir os corações acelerados, a respiração suspirada, e nada mais pôde atrapalhá-los.
Não soube dizer quanto tempo ficaram grudados, nem quanto tempo levaram para se laçarem para sempre, mas era essa história que contava a todos, como um herói de guerra, mostrando sua aliança negra como se fosse – e era – a maior medalha, concedida apenas aos vencedores no campo de batalha do amor.
quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007
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