quinta-feira, 22 de fevereiro de 2007

E ainda há quem não acredite...

Ruborizou ao ser flagrado pensando nela. Poderia ter sido pior do que foi, porque acabara de guardar no fundo do bolso um papel rabiscado de poesia menor. Fazia tempo que o destino não lhe pregava uma peça, mas parece que veio tudo de uma só vez, cobrando juros.

Desde o dia em que a fitou por detrás de sua câmera pela primeira vez, percebeu que estava entrando num perigoso e excitante labirinto do amor: aquele que nasce entre amigos.

Não sabia até que ponto tudo o que sentia, a partir daquele momento, era correspondido da mesma forma. Mas era correspondido. Filmes, livros, mensagens poéticas, conversas demoradas e tudo mais o que se pode ter com uma pretendente a uma namorada, assim como uma grande amiga. "A diferença está no tocar dos lábio" era o que pensava.
Era um pensamento real e recorrente, este de que namoradas eram amigas com maior intimidade. E era justamente por isso que aquela mulher tornava-se tão especial. Era, além disso, uma mulher feita, quadril definido, costas largas, cabelos enrolados e olhos lanceados, negros e misteriosos como a mais profunda madrugada. Carregava uma energia de guerreira mas sua voz e sua expressão eram de uma inocência apaixonantes. Foi justamente no meio deste paradoxo que, perdido, foi atingido no peito pelo projétil do amor.

Já não era tão seguro como antes e sentia-se desinteressante ao lado dela. Só restou-lhe a mais velha e eficaz arma que conhecia para, ao menos, prorrogar o fim do seu delírio: abriu mão da poesia.

Foi como chuva no sertão. Bastaram os primeiros pingos de Rilke e Garcia Márquez para que suas chances passassem a florescer. A correspondência foi tão imediata e verdadeira que reconheceu de primeira o coração solitário que tentava conquistar. Era com o dele: de paixões verdadeiras, antigas e bem acabadas, mas ainda presentes, metamorfoseadas pelo uso da razão e culto ao passado. Não era tão surrado quanto o dele, mas se reconhecia de longe os gritos de um coração de "amores-para-sempre". Teve vontade de declarar-se copiosamente e sem amarras, mas a prudência o fez recuar e mudar de tática. Mas não fez nada diferente do que fez a vida inteira: conformou-se com o que recebia e esperou um recado dos céus ou dela própria, como sinal verde para um próximo passo. Era uma amiga única no mundo, talvez a sua última chance concedida pela providência antes de se entregar de uma vez à solidão dos românticos derrotados pelo mundo real.

À esta altura, não eram poucas as pessoas que haviam percebido a mudança radical de atitude dos dois. Uns com mais, outros com menos liberdade, perguntavam a ele quando iriam revelar o namoro secreto. O que lhe doía não eram os questionamentos freqüentes, mas sim a dura realidade de nunca tê-la beijado, nem em sonho.

Passava noites lendo e escrevendo, pensando se ela estaria pensando nele e se estaria perturbada com os comentários dos amigos. Sabia que nunca saberia a resposta porque estava lidando com um coração que era exatamente como o seu. Nenhum dos dois iria renunciar à segurança e felicidade dos flertes camuflados para aventurar-se em campo aberto onde o pior castigo seria a rejeição do amor carnal – se é que ela sentia o mesmo.

Acordou, num outro dia, crendo que tudo aquilo não passava de fantasia. A carência crônica somada ao jeito amoroso dela, temperados com os comentários públicos, sempre positivos, sobre o suposto romance, lhe mexeram a cabeça. Ainda não havia contado para ninguém sobre ela, tão pouco comentado à respeito de suas intenções. Já não sabia o que queria.

E então foi surpreendido mais uma vez, só que agora por ele mesmo, enquanto lia um cartão de amor à venda numa barraca de ambulantes na rua. Não se condenou, pelo contrário, decidiu que era hora de arriscar um pouco mais. Ao aceitar isso, um frio irreal se aplacou sobre o seu corpo. Estava petrificado, tremendo, mas mesmo assim mandou para ela um trecho do seu diário, aspeou, e não citou autor. Não mentiu, por tanto. A mentira era uma arte de guerra que havia abdicado há muito tempo. Apenas omitiu o fato de ter sido ele mesmo o autor dos versos e, mais do que isso, era ela a figura referida no trecho.

Ela achou lindo e recompensou a audácia dele com o que tinha de melhor em literatura. Intensificou-se a batalha velada de quem conseguiria tirar o outro do chão mais alto citando um poeta ou um romancista.

E eles flutuavam. Fernando Pessoa, Clarice Lispector, Garcia Márquez, Florbela e tantos outros ajudaram a colocá-los os dois na zona mais perigosa até então. Era chegado o momento da decisão sem que um ou outro soubesse exatamente qual era o futuro. Com bandeiras, cavalaria e todo o exército tinham que demarcar os novos limites dos corações.

O que tenho a perder? questionava. E ele mesmo respondia sem paciência: ela, burro! Era fato que não queria perder um laço tão forte por conta de um amor fora de hora, mas lembrou-se de que era a sua última chance, determinada por ele mesmo, porque já não tinha mais ânimo para regar novas paixões. Esta era diferente porque parecia já existir desde sempre, e estava apenas adormecida por todo o tempo. Não sabia o que fazer e tinha certeza de que a paciência era a sua maior e mais oportuna virtude.

Antes de dar o passo final – porque supunha que teria que sair dele a iniciativa - resolveu reler suas poesias de antigamente para comparar os amores e se acostumar com as dores da batalha da vida. Eram tristes, meio pobres, e de verdade. Uma ou outra valiam a pena, mas a maioria não merecia terem sido escritas daquela forma. Eram quase seis anos de memórias poéticas escritas num caderno escolar azul. Na capa lia-se "poesias" em baixo relevo forçado por uma caneta sem tinta. Na primeira folha, a única coisa no caderno que não havia sido escrita por ele. Era uma carta de Rilke para o jovem poeta, em seu clássico livro que dizia: amar é bom porque amar é difícil. O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais dura que nos foi imposta, a maior e última prova para a qual as outras são apenas uma preparação. O amor mais humano consiste na mútua proteção, limitação e saudação de duas solidões. Seria isso um sinal? Teria ele encontrado um alento para suas dúvidas numa sutileza da divina providência?

Na contra-paga, o nome de uma outra amiga com seu endereço. Outro sinal, pensou. Resolveu escrever imediatamente meia dúzia de palavras para que, na resposta, tivesse mais uma dica dos céus. E a resposta veio em forma de Mário Quintana (porque é muito bom ter amigos poetas), que dizia. "O segrego é não correr atrás das borboletas".

Ficou boquiaberto. Não havia possibilidade nesse mundo, nem em outro, de que fosse coincidência. Só ele pode entender o que nós não somos capazes. O que havia de especial numa resposta tão curta? Seria o Mário Quintana, seria o significado literal da frase ou as borboletas?

O fato é que decidiu dormir, feliz como há muito tempo não se via, e esperar o dia amanhecer. E esperou amanhecer e anoitecer por dias seguidos, suportando a agonia do desconhecido.

Quando finalmente se puseram frente a frente, o conflito não se deu externamente, mas dentro do corpo dele. Cabeça e coração deveriam se alinhar. Sentia um calor insuportável e um frio no ventre. Os dois sintomas juntos o deixaram nauseado. Sentia o corpo borbulhar, como se tivesse centenas de borboletas na barriga, se debatendo em busca de liberdade. Realmente, não precisou correr atrás delas.

Abraçou-a com força para se estabilizar e sentir na pele cada centímetro do corpo dela. Cochichou alguma coisa ao ouvido e ela quase desmontou. A primeira reação foi de afastar-se, temendo que houvesse ido longe demais, mas ela firmou os pés novamente e, finalmente, suas almas se encontraram. Olharam-se profundamente e não puderam esconder o vermelho intenso dos seus rostos. Tentaram um primeiro beijo, carinhoso, mas o tiro não teve mira apurada. Tocaram os lábios na face um do outro. Abraçaram-se novamente e ele a ouviu dizer claramente três vezes: "beijo, beijo, beijo".

Resolveram tentar novamente o beijo derradeiro da batalha enamorada. Foram mais cautelosos, mais lentos e o alvo atingido foi o canto de suas bocas, o suficiente para congelar o momento. Sentiu um arrepio no corpo todo, como se tivesse passado na frente da morte. Mas sentia-se mais vivo do que nunca, com seus sentidos atentos apenas à conexão dos seus mundos. Literalmente pararam no tempo e puderam ouvir os corações acelerados, a respiração suspirada, e nada mais pôde atrapalhá-los.

Não soube dizer quanto tempo ficaram grudados, nem quanto tempo levaram para se laçarem para sempre, mas era essa história que contava a todos, como um herói de guerra, mostrando sua aliança negra como se fosse – e era – a maior medalha, concedida apenas aos vencedores no campo de batalha do amor.

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