domingo, 14 de março de 2004

---> Continho escrito em Recife, no Carnaval deste ano.



Amores



“Uma terceira perna!”, exclamou Gabriel na primeira página daquele dia.



Lia, e lia compulsivamente um livro de Clarice Lispector, roubado de uma amiga, desde a noite anterior. Só havia parado para dormir algumas horas, com o tal livro em cima do peito, sem mesmo tirar os óculos.



Estava num barco a caminho de Itaparica, com duas mochilas e nada na cabeça, apenas as aventuras de G.H na cozinha de Clarice. Parecia que uma multidão teve a mesma idéia de pegar a primeira balsa no terminal, por que nem mais uma alma viva caberia ali, mesmo que em pé.



Depois de 5 anos, Gabriel não poderia definir se começou a devorar livros para impressionar garotas ou para escapar do tédio solitário nas suas viagens. “Talvez as duas coisas ao mesmo tempo”, refletia. De fato, os livros e os autores abriram muitas portas para puxar conversa com quem quer que fosse. Depois de um tempo, sua energia era tanta que nem precisava se esforçar. Eram elas que perguntavam sobre o livro – qualquer livro – que estivesse folheando. E foi assim naquele dia.



- Noventa e dois. Contados! – comentou uma menina ao seu lado, muito mais para quebrar o gelo do que para informar quantos passageiros haviam entrado na balsa. Era o tipo da frase que pedia um complemento e ela esperou um pouco mais antes de continuar, frustrada pela falta de curiosidade dele.



- “O que!?, você deveria perguntar “o que!?”.



Gabriel não havia ouvido a primeira frase e nem se deu o trabalho de tirar os olhos do livro para satisfazer o desejo da menina. “O que?”, perguntou em fim.



- Somos noventa e dois passageiros. Não acha engraçado que justamente eu tenha sentado ao seu lado?



- Porque acharia? – rebateu ele, com a falta de delicadeza que lhe era característica quando estava sendo incomodado.



“Meu nome é Clarice”. Isso bastou para que ele se permitisse ouvir, de fato, a voz da garota. Achou doce, suave. Fechou os olhos e sonhou por um instante. Fechou o livro e viu a pessoa mais linda, com sorriso mais largo de todo o planeta.



Ela manteve o sorriso e o brilho dos olhos até que ele respondeu “Gabriel, meu nome é Gabriel”.



Ele procurou na lembrança uma cena como aquela num dos mil livros e contos que havia lido para começar a conversa e, principalmente, para prever o final da história. Para ele, a vida é como a literatura e as histórias se repetem, e quanto mais são lidas, mais vezes são vividas.



Não encontrou e sentiu um frio na barriga que não sabia se era fome ou medo, já que doía no mesmo lugar. A incerteza do futuro fez com que ele desistisse da conversa e voltasse a mergulhar no livro. Venceu a curiosidade e o encantamento, encerrou o contato. Clarice obedeceu, silenciou, mas não desistiu. Manteve fixo o olhar nele em apurou os sentidos para conversar com o cheiro, com o calor, com os ruídos do passar frenético de páginas.



Gabriel percebeu, se inquietou, mas não podia se render ao desconhecido. Tentava voltar à cozinha de G.H mas não conseguiu. Olhava para o livro, catatônico. Pulou diversas páginas sem mesmo lê-las e seu pensamento foi longe. O calor foi aumentando, ele se mexia e quando tocava em Clarice sentia um riso silencioso.



Ela estava inquieta também, mas seu controle era como de uma serpente, esperando pela hora do bote. De vez em quando inclinava a cabeça, como se fizesse uma análise do rosto dele. Por vezes ficava vermelha de vergonha de seus próprios pensamentos. Estava curiosa para saber qual livro era aquele, que não parecia tão bom, já que era menos interessante do que ela própria.



Se amaram, sem dúvidas. Criaram seus mundos e se amaram em todas as brechas que se permitiram. Mesmo separados, estavam juntos na angústia de um desejo sem sentido e curioso. Era um caminho sem volta, e eles sabiam disto. E quanto mais o tempo passava, mais se amavam daquele jeito estranho.



A balsa foi chegando ao destino, lentamente atracou e o equilíbrio deles deveria ser quebrado pelo movimento de saída. Os dois esperaram o máximo que puderam. Nenhum pode levantar-se primeiro e, mesmo sem se entre olhar, o fizeram ao mesmo tempo. Parar, um de frente para o outro, numa respiração calma, mas quente. Se olharam fundo e começaram a se amar ali mesmo, sem palavras. Estavam paralisados pelo medo, pelo amor, pela quantidade de gente que se levantou também.



Foram empurrados, um para cada lado. Mantiveram os olhares durante todo processo de desembarque. Mas o mar de gente tratou de afastá-los cada vez mais. Ela foi conduzida pela corrente para a saída rapidamente enquanto ele teve dificuldades com suas tralhas. O livro na mão voltou a ser importante e ele retomou a consciência. Caminhou em direção à saída também, já preocupado com suas próprias coisas.



Desceu pelo píer até um grande terminal para pegar o transporte. Sabia que tinha bastante tempo para esperar e resolveu sentar-se. Antes de abrir o livro, viu o nome de Clarice estampado na capa e sorriu. Voltou a pensar naquela menina com uma saudade incomum e lamentou por tê-la perdido de vista. Contudo, não ficou surpreso quando a viu passar em sua frente. Na verdade não se abateu de maneira nenhuma e acenou como se fosse um velho amigo. Ela respondeu com o mesmo aceno e o mesmo sorriso largo de antes mas para ela também foi só. Já não se amavam mais.

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